Balanço
Um artigo de Jaime Nogueira Pinto
O HUMOR UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO
Os cartoons da Revolução (1974-1976)
Os homens do sistema
Como Afonso Costa foi o símbolo da Primeira República e Salazar do Estado Novo, o grande símbolo do regime e do sistema, para o bem e para o mal, foi e é o Dr. Mário Soares.
Por Jaime Nogueira Pinto
Publicado no Observador às 00:18 de 25 de Outubro de 2025
Os sistemas políticos têm os seus valores, as suas instituições, as suas retóricas, as suas práticas e os seus símbolos. E acabam também por encarnar nos políticos que os dominam e moldam.
Afonso Costa e a Primeira República
Na Primeira República, a grande figura do sistema, o homem do regime, foi, incontornavelmente, Afonso Costa; um livre-pensador ao modo dos radicais franceses, inimigo jurado do Catolicismo e fiel à Maçonaria. Costa era um político com sentido de poder, inteligente, bon-vivant. Dizia-se que a República não podia viver com ele nem sem ele. Do mesmo modo que perseguiu os monárquicos e católicos, reprimiu, à esquerda, proletários e sindicalistas. Criou um sistema em que as eleições se ganhavam na secretaria, através da legislação eleitoral. Havia liberdade, em princípio, mas os jornais monárquicos e católicos eram assaltados “pelo povo”, sempre que se excediam.
Foi o criador do sistema e depois do sidonismo viu, com lucidez, que o sistema criado já não tinha grande viabilidade. Nomeado representante português às negociações de Versalhes, foi ficando por Paris, exercendo advocacia de negócios, e ali viria a morrer, em 1937, eterno conspirador contra a Ditadura Militar e o Estado Novo.
Os novos regimes têm geralmente na sua génese o descontentamento com a disfuncionalidade do que está em vigor: a generalidade dos cidadãos não se preocupa muito com os princípios ideológicos do poder, enquanto o poder garantir lei e ordem e uma economia em que possam viver, criar os filhos e melhorar de vida.
Quando os sistemas não garantem isto e se fecham, como a Primeira República se fechou nos anos Vinte, entram em acção forças de fora do sistema político. E no Portugal de há cem anos, num país com um império colonial africano, os militares, as Forças Armadas, Exército e Marinha, eram politicamente importantes. Pode até dizer-se que eram os principais agentes, por acção ou inacção, das mudanças políticas, desempatando o sistema quando o sistema bloqueava. Ora em 1926 havia esse bloqueio: havia a força dominante do sistema. os “democratas”, já sem Afonso Costa, sucedido por António Maria da Silva, o “engenheiro das revoluções”; havia uma oposição conservadora, com católicos, monárquicos e republicanos, críticos dos “democratas” e do seu sistema; e havia uma “esquerda radical” sindicalista, proletária e proto-revolucionária. Estas três forças não se aliavam nem se entendiam entre si para governar.
Salazar e o Estado Novo
Quando o que está já não tem credibilidade nem capacidade para continuar e o que se apresenta como alternativa ainda não tem força para se impor, a força de desempate é quase sempre a força. Aqui, foi a força das armas, foram os militares. E os militares arrancaram de Braga, numa conspiração de capitães e tenentes, alguns medalhados da Flandres, como o capitão José da Luz Brito, que deu a voz inicial da revolta pelo Regimento de Infantaria 8, levando Gomes da Costa, para garantir a respeitabilidade do generalato.
Os militares criaram as raízes do novo sistema e o “tecnocrata” António de Oliveira Salazar, ministro das Finanças da Ditadura a partir de Abril de 1928, equilibrou as finanças públicas. A partir daí, criou um sistema político nacional-conservador e autoritário que duraria até ao penúltimo quartel do século XX. Salazar tinha pensamento político – como lembrou Manuel de Lucena, terá sido talvez o único pensador político português do século XX que governou. O pensamento político de Afonso Costa era uma adaptação do radicalismo jacobino francês a Portugal; e depois o de Cunhal, que nunca governou, era também uma adaptação do marxismo-leninismo ao nosso país.
Salazar era um pessimista antropológico augustiniano, com raízes na terceira via católica dos Papas Sociais e na crítica racionalista da democracia de Charles Maurras. Era, sobretudo, um pensador com convicções, que considerava a nação portuguesa, a sua integridade e identidade, o valor principal a defender.
Ao mesmo tempo, não é um doutrinário, era um realista ou, quando necessário, mesmo um pragmático. Por isso não quis restaurar a monarquia nem revogar a Lei de Separação do Estado e da Igreja vinda da Primeira República e explicou porquê. Além disso, era cerebral, frio, nada emocional, nada retórico. Era também um homem de sínteses, cujos discursos ocupam vinte centímetros de biblioteca. E tinha um humor sarcástico, às vezes cortante.
Foi também, no início dos anos trinta, protagonista de uma solução centrista, no quadro dos poderes reais em Portugal, entre os fascistizantes nacionais sindicalistas de Rolão Preto e os republicanos conservadores à Cunha Leal. O Regime foi autoritário, antipartidário e com uma clara abertura aos valores católicos e à trilogia “Deus Pátria, Família”. Apanhou um país paupérrimo, com uma das maiores taxas de iliteracia da Europa e quase sem obras públicas desde 1890.
Claro que era mais fácil governar e fazer obra sem oposição activa, do que em democracia partidária. E o Estado Novo foi, em parte, um Estado de obras – barragens, escolas, a segunda industrialização. Nos últimos anos do Estado Novo aproximámo-nos, em capitação, dos países ricos da Europa, como recentemente esclareceu Nuno Palma e já constava das séries estatísticas.
Mas à força de durar e mandar, Salazar criou e moldou um regime e um sistema que só funcionavam com ele e que só muito dificilmente lhe poderiam sobreviver. E não sobreviveram. A guerra de África gerou um progressivo descontentamento nos quadros médios do Quadro Permanente de Oficiais e o espírito do tempo mostrava-se contrário ao “exotismo” do império português. Depois, Marcelo Caetano, o líder da comissão liquidatária do regime salazarista, era alguém a quem não faltava inteligência, mas a quem faltava decisão.
Mário Soares e a Terceira República
Resolvida a questão da guerra de África com uma “descolonização exemplar”, feita a contenção do radicalismo comunista no 25 de Novembro, os militares retiraram-se para uma vigilância mais ou menos simbólica da “jovem democracia”, via Conselho da Revolução. E com a Constituinte e a Constituição de 1976, o país, regressado ao rectângulo pré-Expansão, criou o seu sistema.
O político e símbolo por excelência deste sistema foi Mário Soares. Começara por ser comunista, mas o “golpe de Praga” abalou as suas convicções. Integrou-se na oposição democrática ao Estado Novo e, nessa qualidade, foi o primeiro político não-comunista a pronunciar-se, em 1965, pela entrega do Ultramar.
Beneficiou da política norte-americana de identificar e apoiar (aqui e noutros países) opositores não-soviéticos ao regime e em 1968, bem apoiado internacionalmente, divulgou na Europa o escândalo conhecido por “Ballet Rose”. Depois desta sua iniciativa, a PIDE conseguiu vencer a relutância de Salazar em dar importância aos adversários políticos que não pertencessem ao Partido Comunista e levou-o a fixar-lhe residência em São Tomé e Príncipe, ao abrigo da legislação da Primeira República. O exílio causou perturbação no então governador de São Tomé que, receando que o desterrado “armasse confusão”, pediu aos interesses capitalistas na ilha que lhe arranjassem uma ocupação.
Com Marcelo Caetano, Soares voltou à então Metrópole e tornou-se o líder da oposição democrática. Outra vez, foi penalizado com o exílio; e quando foi proibido de voltar a Portugal, uma alta figura do marcelismo, em nome do Presidente do Conselho, pediu a um homem do petróleo, também banqueiro e com um banco em Paris, para dar um lugar de consultor ao exilado político.
Em 1973, com o regime agonizante, fundou-se, em Bona, com o patrocínio da Internacional Socialista, o Partido Socialista. E em 1974, depois do 25 de Abril, o Dr. Soares voltou ao país e foi para o governo. Foi particularmente activo na entrega do Ultramar, como toda a nova classe política – salvo o Prof. Adelino da Palma Carlos, que não quis colaborar na “descolonização exemplar” e, patrioticamente, se demitiu. Soares não parece ter-se incomodado muito com os custos humanos da descolonização, nem tão pouco com o facto de, depois do 28 e Setembro de 1974, haver mais presos políticos em Portugal do que nas vésperas do 25 de Abril. Só se começou a incomodar no princípio de 1975, quando percebeu que a marcha da revolução, a continuar, marcharia sobre ele e sobre os dele como já tinha marchado sobre os “fascistas”. E foi então um resistente às forças comunistas e da esquerda radical.
Era, pessoalmente, uma pessoa civilizada, com coragem física e capacidade de diálogo e discussão com adversários – falo à vontade, porque fui sempre seu inimigo político. Mas foi e será sempre, junto aos capitães do MFA, o símbolo da descolonização. E o símbolo acabado do regime, do sistema e do que tem de compadrio.
Como Afonso Costa foi o símbolo da Primeira República e Salazar do Estado Novo, o grande símbolo do regime e do sistema, para o bem e para o mal, foi e é o Dr. Mário Soares. Pelo que tê-lo por modelo e pretender emergir como anti-sistémico parece-me ou desprovido de toda a lógica ou mais um exemplo dos perigos e armadilhas da retórica. Mas uma coisa é certa: não deixa de ser esclarecedor.
FIM

